sexta-feira, março 28, 2008

Museu de Odrinhas

Quem se aventure a dar uma daquelas voltas domingueiras até à Ericeira, fica desde já a saber que ao passeio pode acrescentar um pouco de História. Partindo de Sintra rumo à Ericeira, pela EN247, chega-se ao lugar de Odrinhas onde se encontra um belíssimo museu arqueológico que reúne um interessante conjunto de peças arqueológicas, romanas e visigóticas entre outras.
Curiosamente é este museu que alberga os três únicos sarcófagos etruscos existentes em Portugal.

Instalado no local onde outrora existiu uma villa romana e de que restam ainda algumas estruturas, possui um interior "moderno", agradável, onde o espólio está bem organizado. A visita é guiada, com simpatia e com a preocupação de esclarecer as dúvidas dos visitantes. Num espaço exterior, anexo ao museu, encontra-se o único cemitério de cariz medieval escavado em Portugal. Próximo, também, é possível observar os "Menires da Barreira", um conjunto megalítico datado de cerca de 3000 a.C.

quarta-feira, março 19, 2008

A revolução de 1383 - I

Dizem-nos os velhos alfarrábios que, num arrobo patriótico e em defesa da nossa independência, o povo lisboeta saiu às ruas numa certa manhã de 6 de Dezembro de 1383 (talvez rente ao meio-dia, talvez mais). Que morreram umas quantos gentes, inclusivé o desgraçado bispo que foi lançado de uma das torres da Sé, onde se refurgiara aflito, e acabou entregue aos cães no Rossio. Velhos ódios populares, insatisfações e vida miserável, numa época economicamente difícil, explodiram em força naquele dia. Sábio poder que as soube conter e que as soube largar na devida altura! Os tais velhos alfarrábios dizem-nos que um certo Conde João Fernandes Andeiro, galego de origem e amante da rainha Leonor Teles (com a qual já prevaricava ainda em vida de El-Rei D. Fernando), esteve na origem do levantamento pois tentara matar o ditoso filho bastardo de D. Pedro, de boa cepa portuguesa e sem misturas castelhanas - D. João, Mestre de Avis.
Existiam, claro está, as velhas intriguices que deixavam o povo curioso e revoltado (já que ao tempo não existiam telenovelas). É certo e sabido que do casamento de D. Fernando com Leonor Teles apenas saira uma filha e que esta, na sequência do seu casamento com D. João de Castela, punha nas mãos do seu marido o futuro de Portugal (Tratado de Salvaterra de Magos, 1383); de igual modo era sabido que Leonor, estando D. Fernando na alcaçova, se entretinha com o Andeiro...ah, que "aleivosa"!
Bom, mas o que aconteceu realmente? A leitura de Fernão Lopes não nos deixa dúvidas - o povo foi manipulado (assim como é contido, assim pode ser largado...).

A TRAMA
Lisboa, 6 de Dezembro de 1383. São dez, onze horas da manhã. Aproxima-se o momento em que a maior parte dos habitantes da cidade de Lisboa disfruta da primeira refeição substancial do dia - o jantar. No Paço de Apar S. Martinho, próximo da Sé, o Conde Andeiro recebe do Mestre de Avis o primeiro dos golpes que lhe irão pôr termo à vida. É Rui Pereira, tio daquele Nuno Álvares que viria a destacar-se em Atoleiros e Aljubarrota, que termina à espada o que fora começado. Os dois assassinos não estão sós - João Afonso Telo, conde de Barcelos e irmão da rainha e outros de estirpe semelhante. Dando seguimento ao combinado com Álvaro Pais (antigo Vedor da Chancelaria), o pagem do Mestre de Avis sai a cavalgar pela cidade, berrando: "Maton o Meestre! maton ho Meestre nos Paaços da Rainha! Acoree ao Meestre que matam" (1) É o alvoroço! Junto às portas do Paço, a indignação popular cresce e ouvem-se insultos vários contra a "aleivosa" e o malandro do Andeiro. Finalmente, o Mestre assoma apaziguador a uma janela: "Amigos apacificae vos, ca eu vivo e saão soom a deos graças."(2) Ao que povo responde, aliviado: "Que nos mandaees fazer, Senhor? que querees que façamos?".(3)
A trama estava consumada.
O desgraçado do Andeiro foi enterrado sem espalhafatos na Igreja de S. Martinho, da qual hoje em dia nada resta e sobre cujo local passa agora o eléctrico que sobe para a Graça.
Os factos, tal como nos são narrados por Fernão Lopes, nada têm de invulgar para a época. Os assassínios políticos eram comuns - o próprio rei D. Fernando, anos antes, fora alvo de vários atentados e, na vizinha Castela, Henrique de Trastâmara eliminara a golpes de punhal o seu irmão bastardo D. Pedro; e o que dizer de uma certa Inês de Castro, aparentemente inofensiva e que acabou degolada embora fosse mãe de príncipes?!
O que os mentores do homicídio do Conde Andeiro provavelmente desconheciam é que, com o seu "golpe de estado" e manobrando o povo, tinham despoletado um processo que iria agitar Portugal.

(continua)

(1)(2)(3) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Cap. XI

segunda-feira, março 17, 2008

Lisboa Medieval: apontamentos

Legenda da imagem:
a) Rossio b) Alcaçova do castelo c)
d,e) Cerca moura

Quem passeia hoje pela cidade de Lisboa não tem, nem pode ter, a percepção de como ela era no tempo em que D. Afonso Henriques a conquistou aos mouros. O burgo evoluiu, naturalmente, mas mesmo aquela que pode ser considerada a sua zona histórica sofreu grandes alterações e em boa parte devido ao terramoto de 1755. O que hoje subsiste de "medieval" em Lisboa pode ser encontrado nos antigos bairros de Alfama e Mouraria, no alto e na vertente sul do monte onde podemos ver o que resta do castelo de S.Jorge e mesmo esse sofreu importantes intervenções de restauro na década de 1940 (1).

Quando em 1147 D. Afonso Henriques conquistou a cidade, supõem-se que esta teria já entre 12 a 15 mil habitantes. Para além do casario intra-muros (Cerca Velha ou Moura), existiria já um populoso bairro em parte do vale da Baixa, fundado sobre a acumulação de sedimentos e assoreamento do esteiro do Tejo(2).

D. Afonso III foi o primeiro rei que estabeleceu corte em Lisboa, elevando-a a capital do reino e iniciando, assim, um período de mais rápido desenvolvimento. Se algumas cidades do nosso país ficaram a dever o seu crescimento e a sua prosperidade ao comércio externo, principalmente marítimo, Lisboa foi uma delas. A sua importância comercial era evidente devido à tradição do seu comércio muçulmano e ao seu bom porto. Quando nos fins do séc. XIII, os italianos iniciaram as suas viagens para a Flandres, através do estreito de Gibraltar, estabeleceram-se nalguns portos portugueses, sobretudo em Lisboa. A cidade tornou-se, então, um activo centro de comércio.

A partir de meados do séc. XIV, o crescimento da cidade acentuou-se devido à forte imigração de centenas ou milhares de pessoas oriundas de todo o Reino. Esse crescimento foi de tal forma que D.Fernando (1345-1383) resolveu proceder a novo amuralhamento - as novas muralhas levaram 2 anos a construir e fechavam uma área de 103 hectares; as suas portas principais eram as de Santa Catarina (ao actual Largo das Duas Igrejas), São Roque (largo de Trindade Coelho); postigo do Duque, Portas de Santo Antão (aproximadamente onde é hoje a Casa do Alentejo), da Mouraria, de Santo André e da Cruz, correndo a muralha, na margem, até ao Corpo Santo.
À semelhança de outros burgos em condições semelhantes, surgiram espaços comerciais - mercados e feiras -, alguns dos quais nas imediações das portas da muralha. Um desses espaços era o "rossio"(3), próximo da porta de Santo Antão. Outros nós vitais eram as praias e os terrenos junto ao rio que, no tempo de D. Fernando, conheciam um muito concorrido mercado - a Ribeira Velha (designação posterior) - que se estendia do Campo das Cebolas à Rua do Cais de Santarém.
Ainda no séc. XIV, surgiu uma rua dedicada ao comércio retalhista, que se converteu no verdadeiro coração da cidade - a Rua Nova. Ali residiam os ricos burgueses, se abriam as tendas mais ricas e requintadas e se realizavam feiras e festividades. Esta rua ia da esquina da actual Rua do Ouro para a de S. Julião, descaindo para a margem, até ao ponto onde a Rua dos Fanqueiros(4) entronca com a Rua do Comércio.
Os mouros e os judeus possuiam locais próprios para residir - a "aljama" e as judiarias (5), frequentemente próximas das áreas de mais intenso movimento mercantil.
Perto a "aljama" situavam-se as casas nobres da cidade, como sejam o "Paço da Rainha" na Rua do Limoeiro (Leonor Teles), próximo da Sé, e supostamente a casa onde D. João I terá nascido.
Toda a zona da Baixa assemelhava-se muito a Alfama e a actual Praça do Comércio estava alagada. Entre a Praça do Comércio e o Cais do Sodré, seriam os estaleiros navais de D. Fernando.

Não existem, segundo sei, visitas organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa ou pelo Museu da Cidade que cumpram um trajecto que nos leve a conhecer a cidade como ela era antes de 1755. O SPGL (Sindicato dos Professores da Grande Lisboa) organiza uma ou outra de tempos a tempos e os não sócios podem inscrever-se...mas não é por aí que vamos lá. As iniciativas nesse sentido partem de escolas, professores e alunos, exigindo muita pesquisa. O Museu da Cidade é um bom ponto de partida dado que possui informação sobre a Lisboa Medieval e talvez, neste momento, esteja capaz de fornecer um percurso pedreste. Deixo aqui alguns links úteis:

(1)O castelo de S.Jorge sofreu estragos na sequência dos terramotos de 1531, 1551, 1597 e 1699.
(2) O assoreamento do Tejo tem provocado, ao longo dos séculos alterações significativas nas zonas ribeirinhas da cidade de Lisboa. Crê-se que, ainda no séc. XI, um braço do Tejo alagava toda a zona da Baixa até ao Rossio, onde desaguavam dois cursos de água. Um desses cursos de água - o rio de Valverde - percorria o vale onde viria a ser rasgada a Avenida da Liberdade. A documentação da época (séc.XII) faz referência às "hortas de Valverde" que abasteciam a cidade.
(3) Designação atribuída, segundo Oliveira Marques, a um baldio.
(4) A toponímia chama-nos a atenção para os nomes de algumas ruas de Lisboa, reveladoras dos mesteres - fanqueiros, bacalhoeiros, correeiros. Sabe-se que já no séc.XIV os mesteirais tinham ruas próprias.
(5) Descendo a escadaria da Rua Norberto Araújo, passando a Rua da Adiça, Rua S. João da Praça, entra-se na Rua da Judiaria, onde seria o bairro judeu e a Sinagoga (actual prédio com o nº 8 do Beco das Barrelas).
Alguns estudos sobre a cidade de Lisboa:
AAVV, De Campo de Ourique à Avenida, Col. Freguesias de Lisboa, Biblioteca da Educação, CML - Pelouro da Educação, Lisboa, 1995.
AAVV, Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa, Assembleia Distrital, Lisboa, 1973-1988.
CASIMIRO, Augusto, Lisboa Mourisca, 1147-1947, Minerva, V.N.Famalicão, 1947.
CASTILHO, Júlio de, Lisboa Antiga. Bairros Orientais, S. Industriais da C.M.L., 2ª Ed., 1937. (só mesmo no alfarrabista)
PROENÇA, Raúl, Lisboa e Arredores in Guia de Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª Ed., Coimbra, 1988

domingo, março 16, 2008

Sou historiador porque sou o filho da morta e o mistério do tempo me persegue desde a infância. Até onde remotam as minhas lembranças, encontro-me fascinado pela memória. Ela retém o cimento do espírito, o segredo da nossa identidade; a memória entrega-nos à vertigem do ser e do tempo.

Pierre Chaunu (1982) in Ensaios de Ego-História, Col. Lugar da História, Edições 70, Lisboa, 1986, p.63

Não sou historiadora, nem tão pouco é o meu objectivo escrever aqui como se o fosse. Ecos do Passado não é um ensaio historiográfico; é um exercício de memória na senda daquilo que somos e porque somos, como resultado de uma aventura sem fim de gerações em cuja a acção reside "o segredo da nossa identidade".