quinta-feira, abril 03, 2008

Revolução de 1383 - II

Como evoluiram os acontecimentos após a morte do Conde Andeiro?
Já sabemos que em resposta ao apelo de Gomes Freire e Álvaro Pais, o povo acorreu ao Paço da Rainha para ajudar o Mestre de Avis. De ânimos acesos e julgando-se liberto de todas as amarras socio-económicas, a "arraia-miúda" comete excessos vários - mata o bispo da Sé porque este não mandara tocar os sinos a rebate; mata o prior de Guimarães que, por acaso também estava lá; mata o desprevenido tabelião de Silves que tivera o azar de chegar nesse dia a Lisboa; projecta roubar os judeus e os mouros.
No Paço, o Mestre tenta justificar-se perante Lenor Teles, pede-lhe perdão(não sem ter jantado antes, claro), que fez o que fez por uma questão de segurança da sua própria vida. A rainha é que não está pelos ajustes e parte para Alenquer, juntamente com uma boa parte da nobreza, de onde pedirá auxílio ao seu genro, o rei de Castela. Afonso Telo, um dos principais implicados no golpe, acompanha-a.

E agora? O Mestre de Avis não tem dúvidas - a vingança não tardará. Resolve fugir para Inglaterra. O povo cai em si e adivinha já as represálias que sofrerá. Prevê-se invasão castelhana...massacre. Nenhum dos envolvidos na trama e seus apoiantes se preocupa com o que poderá acontecer à plebe urbana: "O povo, que nascera para trabalhar, não podia fazer parte das suas preocupações. O melhor era, como aconselhava (a prudência), cada qual pensar na segurança de seus bens.", diz-nos Valentim Fernandes (1).

Álvaro Pais parte para Alenquer, na esperança de conseguir uma reconciliação com a rainha e é aqui que surge um pormenor interessante - propõem-se a Leonor Teles, a "aleivosa" no dizer do povo, que case com o Mestre de Avis. Pormenor interessante porque nos mostra que, a despeito do que de mal dela se pensava, não passava de um "joguete" em toda a trama política e era essa, sem sombra de dúvida, a posição da mulher nobre na Europa medieval - servir interesses políticos e patrimoniais (ambos interligados), por via do casamento. Leonor Teles rejeitou a proposta, mas não teve melhor sorte por causa disso, uma vez que terminou os seus dias enclausurada no Mosteiro de Tordesilhas, a mando do seu genro.

Entretanto em Lisboa, o Mestre de Avis é animado a não partir. Saliento aqui a intervenção de um certo emparedado, Frei João da Barroca, muito dado a profecias e que sob consulta terá vaticinado o trono ao futuro rei de Portugal. Enfim, lá fica marcada "assembleia" na Igreja do convento de S. Domingos (Rossio) onde "os homes dos mesteres, pobradores e moradores de Lisboa"(2) e inúmeros populares resolvem elevar o mestre à categoria de "Regedor e Defensor do Reino". A burguesia citadina, à cautela, ainda se tentou abster de tal decisão, mas acabou por a aceitar.

Agora sim, vão surgir as compensações para quem as merece (e não merece). O Mestre, que nesta altura não passava de um mero representante dos interesses ao trono do seu meio-irmão D. João (filho de D.Pedro I e Inês de Castro), retido em Castela, constitui um conselho formado por burgueses que viram assim atendidas as suas antigas reinvindicações de associação ao poder político. Por sua vez, o governo da cidade de Lisboa fica entregue aos mesteirais. Acerca destes últimos diz-nos Maria José Ferro: "A 1 de Abril de 1384, o Mestre de Avis privilegia os naturais de Lisboa, numa carta que não se contenta com o formulário usual de confirmação de privilégios anteriormente outorgados, mas que é, sobretudo, uma resposta a possíveis reinvindicações do povo miúdo.(...) É nele, segundo a nossa opinião, que está patente a grande vitória que o povo miúdo dos mestres obteve com a sua acção em 1383-85:
- uma participação activa na vida do município;
- uma colaboração, por intermédio de representantes seus, no conselho régio;
- e a inversão dos privilegiados no pagamento de impostos, o qual seria distribuído em função da riqueza de cada um donde a isenção dos menos ricos
(o que me faz isto lembrar?!)".(3)
A estas disposições se acrescenta que em 1385, todas as pretensões dos mesteirais foram deferidas por D. João I.

(1) Lisboa. A Força da Revolução (1383-1385), Col.Horizonte Histórico, nº7, Livros Horizonte, Lisboa, 1985

(2) Fernão Lopes, Crónica de D. João I

(3) "A Revolta dos Mesteirais de 1383" in Actas das III Jornadas Arqueológicas de 1977, Vol.I, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1978, pp.367-368