quarta-feira, março 19, 2008

A revolução de 1383 - I

Dizem-nos os velhos alfarrábios que, num arrobo patriótico e em defesa da nossa independência, o povo lisboeta saiu às ruas numa certa manhã de 6 de Dezembro de 1383 (talvez rente ao meio-dia, talvez mais). Que morreram umas quantos gentes, inclusivé o desgraçado bispo que foi lançado de uma das torres da Sé, onde se refurgiara aflito, e acabou entregue aos cães no Rossio. Velhos ódios populares, insatisfações e vida miserável, numa época economicamente difícil, explodiram em força naquele dia. Sábio poder que as soube conter e que as soube largar na devida altura! Os tais velhos alfarrábios dizem-nos que um certo Conde João Fernandes Andeiro, galego de origem e amante da rainha Leonor Teles (com a qual já prevaricava ainda em vida de El-Rei D. Fernando), esteve na origem do levantamento pois tentara matar o ditoso filho bastardo de D. Pedro, de boa cepa portuguesa e sem misturas castelhanas - D. João, Mestre de Avis.
Existiam, claro está, as velhas intriguices que deixavam o povo curioso e revoltado (já que ao tempo não existiam telenovelas). É certo e sabido que do casamento de D. Fernando com Leonor Teles apenas saira uma filha e que esta, na sequência do seu casamento com D. João de Castela, punha nas mãos do seu marido o futuro de Portugal (Tratado de Salvaterra de Magos, 1383); de igual modo era sabido que Leonor, estando D. Fernando na alcaçova, se entretinha com o Andeiro...ah, que "aleivosa"!
Bom, mas o que aconteceu realmente? A leitura de Fernão Lopes não nos deixa dúvidas - o povo foi manipulado (assim como é contido, assim pode ser largado...).

A TRAMA
Lisboa, 6 de Dezembro de 1383. São dez, onze horas da manhã. Aproxima-se o momento em que a maior parte dos habitantes da cidade de Lisboa disfruta da primeira refeição substancial do dia - o jantar. No Paço de Apar S. Martinho, próximo da Sé, o Conde Andeiro recebe do Mestre de Avis o primeiro dos golpes que lhe irão pôr termo à vida. É Rui Pereira, tio daquele Nuno Álvares que viria a destacar-se em Atoleiros e Aljubarrota, que termina à espada o que fora começado. Os dois assassinos não estão sós - João Afonso Telo, conde de Barcelos e irmão da rainha e outros de estirpe semelhante. Dando seguimento ao combinado com Álvaro Pais (antigo Vedor da Chancelaria), o pagem do Mestre de Avis sai a cavalgar pela cidade, berrando: "Maton o Meestre! maton ho Meestre nos Paaços da Rainha! Acoree ao Meestre que matam" (1) É o alvoroço! Junto às portas do Paço, a indignação popular cresce e ouvem-se insultos vários contra a "aleivosa" e o malandro do Andeiro. Finalmente, o Mestre assoma apaziguador a uma janela: "Amigos apacificae vos, ca eu vivo e saão soom a deos graças."(2) Ao que povo responde, aliviado: "Que nos mandaees fazer, Senhor? que querees que façamos?".(3)
A trama estava consumada.
O desgraçado do Andeiro foi enterrado sem espalhafatos na Igreja de S. Martinho, da qual hoje em dia nada resta e sobre cujo local passa agora o eléctrico que sobe para a Graça.
Os factos, tal como nos são narrados por Fernão Lopes, nada têm de invulgar para a época. Os assassínios políticos eram comuns - o próprio rei D. Fernando, anos antes, fora alvo de vários atentados e, na vizinha Castela, Henrique de Trastâmara eliminara a golpes de punhal o seu irmão bastardo D. Pedro; e o que dizer de uma certa Inês de Castro, aparentemente inofensiva e que acabou degolada embora fosse mãe de príncipes?!
O que os mentores do homicídio do Conde Andeiro provavelmente desconheciam é que, com o seu "golpe de estado" e manobrando o povo, tinham despoletado um processo que iria agitar Portugal.

(continua)

(1)(2)(3) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Cap. XI